Quem nunca quis escrever um romance?
Nos cursos de Storytelling que costumo ministrar, só por curiosidade, peço para levantar a mão quem ali na sala, salão ou auditório tem o sonho de escrever um romance. A resposta é sempre incrível. Tenho de buscar QUEM não levantou a mão. A maioria esmagadora, embora esteja ali para aprender ou desenvolver os princípios básicos das narrativas a fim de usar Storytelling para vender mais, serem capazes de persuadir ou negociar, ou escrever um blog ou fazerem publicações em redes sociais, lá dentro, mas não tão no fundo, sonham escrever um romance. E não é livro de autoajuda ou inspiracional, é romance mesmo, daqueles que podem virar um filme ou uma série de TV.
E aí vem a minha segunda questão para eles: quem já conseguiu começar? E peço que levantem a mão.
A resposta é o contrário, tenho de cuidadosamente buscar na audiência quem LEVANTOU a mão. Muitas vezes, ninguém se manifesta.
Sabe por que é assim?
O início da escrita normalmente é a parte mais difícil, e, se desejar ter sucesso, é muito importante começar com o pé direito. O começo da história dá o tom para o resto do livro e prende a atenção do leitor, mas também não pode ser um texto – conjunto de parágrafos – apressado, que entrega tudo de bandeja. Existem diversas estratégias que podem ser utilizadas para dar o pontapé inicial na escrita.
Ou seja, não é fácil mesmo. Mas tem remédio. Neste artigo mencionarei duas.
A seguir irei comentar um dos entraves mais comuns. No meu livro 5 Lições de Storytelling: o best-seller você poderá encontrar listas e comentários bem mais completos, pois é um assunto que pode-se estender por páginas.
Pense no leitor em potencial que passeia por uma livraria ou pelo editor para quem você enviou um manuscrito. Eles têm centenas de livros disponíveis e nem ouviram falar da maioria deles. Quando eles pegam um que chama a atenção por causa da beleza da capa, a originalidade do título, ou qualquer outro motivo, eles irão folhear – pasme-se! – por não mais do que trinta segundos (apenas um rápido olhar nas primeiras linhas do seu texto é tudo o que você pode esperar). Digo isso, porque desafio você a se colocar no lugar de um editor com dezenas de manuscritos por examinar e muitas outos afazeres a pedir-lhe atenção – como finalizar o texto de um autor que está sendo publicado, no qual a editora investiu bem mais que 5 vezes o salário mensal do editor. O que você acha que o editor deveria encontrar ao se deparar com o texto que você enviou? Um começo cativante ou a previsão do tempo? Um começo cativante ou a aparência de personagens que você não conhece e talvez nem queria conhecer?
Para ser publicado, o objetivo #1 do autor é atrair os leitores para que concluam a primeira página do seu romance e IMPLOREM por mais. Editora comercial precisa fazer dinheiro com os livros que publica, e é caro publicar. Por que investiria em você se o seu livro corre o risco de não vender?
Vamos então às dicas elementares!
1. Como eu disse, não comece a falar sobre as condições meteorológicas
Coisas como “A noite estava fria” ou “Naquele dia estava chovendo”. Aliás, «estava» qualquer coisa está fora de questão. Essas bobagens, verdadeiras conversas de sala de espera do dentista – tópicos para os quais recorremos quando não sabemos o que dizer – não são boas aberturas. Claro, se o clima afetar o desenvolvimento da trama desde o começo (ou, certa vez me disse um editor americano, a menos que você esteja escrevendo um romance sobre um meteorologista que estuda o clima), não é uma boa ideia começar falando sobre o calor ou a chuva, que você acordou e ventava e por aí vai. REPITO! Se essa for a sua história, essa será a exceção a essa regra.
Para dar um exemplo prático; transcrevo a abertura de duas histórias que publiquei.
INTERLÚDIO (2ª Edição, Ed. DVS)
Ia dizer “Instituto Cultural Norte-Americano, boa-tarde!”, mas não deu tempo. Quem chamava do outro lado da linha já estava falando.
— Um homem com sotaque inglês — cochichou Mirta, trazendo o aparelho para mais perto de mim — quer falar com o professor Lázaro Prata.
Apanhei o telefone das mãos da secretária, cuidando para que o fio não derrubasse os livros nem as caixas de giz empilhadas na mesa.
— Sim. Lázaro falando.
O sotaque era americano. A voz nasalada mostrava desconforto.
Tomado de uma certa agitação, pus-me de pé para prosseguir a conversa; Mirta, enquanto isso, apressava-se em conduzir para as salas os alunos que chegavam.
O homem apresentou-se como Comandante John Betts, adido militar. “Adido. Adido?” Deixei a conversa fluir, não sabia tudo em inglês.
LUZ (que será publicado em breve pela Ed. DVS)
Hoje tomei a decisão mais importante na minha vida: não quero morrer nunca mais.
Não sei como isto funciona com os outros. Talvez os outros morram. Talvez os corpos virem cinzas e, com eles, as suas lembranças, as suas histórias, as suas personalidades. O legado será apenas o que deixaram para os outros, a ‘persona’, isto é, o corpo e alma, se desejar definir assim o que o anima, sumirão para sempre, virarão poeira cósmica e será o fim.
Comigo não será assim.
Até pouco tempo, eu imaginava um túmulo cercado de flores silvestres em algum dos tantos pequenos cemitérios medievais no Reino Unido ou uma placa no chão, como aquelas que a gente vê em Beverly Hills, no Estados Unidos, em que põem uma estrela e o nome da gente. Só que comigo, eu imaginava esta placa apenas com o meu nome, sem estrelas, cruzes ou outros símbolos religiosos, numa floresta de pinheiros azulados nas Terras Baixas, na Escócia, onde até já adquiri um pedacinho de terra e ganhei o título de Lorde James McSill.
Mas não vai ser assim.
Até muito pouco tempo, eu imaginava a minha passagem por este Universo já traçada, algum fenômeno natural que não compreendia trouxe-me do nascer até este momento, viveria e morria sem dor. Também nos meus planos para o fim, dizia a mim mesmo que nunca deveria ter medo da morte, porque morrer não dói e, se dói, ninguém veio me segredar este fato.
Porém, a história foi outra.
Ou melhor, é outra…
Usei acima exemplos de textos meus, embora haja exemplos maravilhosos como o James Patterson, que, infelizmente, demoraria demais para pedir as permissões necessárias para transcrevê-los aqui. (Embora, ainda que neste artigo, usarei Saramago, apenas algumas linhas, que estão disponíveis em trabalhos académicos). Esses, porém, já servem para você ter uma ideia. Costumo dizer que o ‘livro tem de estar resolvido’ mais ou menos nas primeiras 16 linhas. No caso do ‘Interlúdio’ resolvi em cerca de 14. No caso do Luz, tudo que você leu já será o primeiro capítulo, então decidi resolver com um número maior de linhas. Observe que, embora o meu trabalho nunca foi ser um romancista, pois escrevo livros técnicos e pago as minhas contas como consultor, ao escrever o que almejo, que seja um romance que venda, esforço-me para conseguir uma abertura que puxe o leitor para a história, que fique curioso e queira continuar lendo.
E essa é a segunda dica!
2. Chame a atenção dos seus leitores
Acho que ao ler os exemplos este ponto ficou claro – você precisa capturar a atenção dos seus leitores, já na primeira linha de texto, se isto for possível. O certo é que algo interessante deve acontecer na história desde a primeira página. Tente evitar recorrer a ações rotineiras e comuns com as quais ninguém se preocupa, como acordar, desligar o despertador, ir ao banheiro etc, a não ser que seja a história. Por exemplo, no ‘Interlúdio’ essas linhas são absolutamente necessárias, pois afetam 100% a história até a última página do livro.
«Ia dizer “Instituto Cultural Norte-Americano, boa-tarde!”, mas não deu tempo. Quem chamava do outro lado da linha já estava falando.
— Um homem com sotaque inglês — cochichou Mirta, trazendo o aparelho para mais perto de mim — quer falar com o professor Lázaro Prata.
Apanhei o telefone das mãos da secretária, cuidando para que o fio não derrubasse os livros nem as caixas de giz empilhadas na mesa.
— Sim. Lázaro falando.
O sotaque era americano. A voz nasalada mostrava desconforto.»
Já no ‘LUZ’, a primeira linha, além de resumir a história, dá o tom para 100% do que você vai ler a seguir – se comprar o livro.
«Hoje tomei a decisão mais importante na minha vida: não quero morrer nunca mais.»
Por exemplo, no romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, um dos mais populares romances do escritor, por ser uma contundente crítica ao estado, incorpora elementos das narrativas distópicas, porém os submete a outra ótica, resultando, a meu ver, em uma distopia positiva. Para introduzir a questão, a abertura da segunda parte do romance, que conclui o episódio da primeira manifestação da “treva branca”, quando um motorista fica cego no meio do trânsito e é auxiliado por um estranho:
Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais que obedecer àqueles sentimentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do género humano, podendo ser encontradas até em criminosos bem mais empernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre. […]
Essa abertura apresenta o leitmotiv do romance, revelando um opaco cenário utópico. Sendo o altruísmo e a generosidade os sinais mais positivos de humanidade, esses deveriam ser os pilares da sociedade. Ao mesmo tempo, a abertura resume para o leitor, na imagem alienada do ladrãozinho, a trajetória literária do escritor Saramago, cujas obras sempre procuraram criar um confronto contra os “donos do negócio”.
A cena inicial já abre no meio do caos do tráfego. Um semáforo fica verde, mas nem todo mundo começa a mover o carro. Há um homem que agita os braços e grita alguma coisa em vez disso. Depois que os pedestres o abordam para ver o que está acontecendo, o homem sai do carro e grita: “Estou cego!”. Nesse ponto, o livro nos prende.
Coloque algo em movimento.
Encontrei este conselho em vários livros e já o ouvi em conferências de autores. Recomenda-se começar com um elemento móvel como um trem, um carro, alguém correndo, etc. Na série de cinco livros, Book-in-a-box, que escrevi com outros autores, publicada pela Ed. DVS, deixo claro, quando menciono esse tópico, que prefiro uma primeira frase ou sentença de abertura em que algo se ‘move’ e causa ou resulta numa ação, ao invés de uma frase como:” O luar estava parado e líquido na praia pálida “. Observe como fiz isto de forma bem simples em ‘Interlúdio’: «— Um homem com sotaque inglês — cochichou Mirta, trazendo o aparelho para mais perto de mim — quer falar com o professor Lázaro Prata.»
Coloquei um objeto, o telefone, se aproximando de mim. Simples assim! Mas creio que dá para visualizar o braço da secretária se movendo, o aparelho na mão dela fazendo uma curva pelo ar e, se for ler o romance, verá que na sequência da cena, incluí muitos outros movimentos, na verdade, você terá mais a impressão de estar vendo um filme do que lendo um romance. Já com o LUZ usei outra técnica, criei um conflito entre a morte, que parece inevitável a todos nós, mas, neste caso, ao leitor, e traço um contraste com a minha decisão de não morrer jamais. Aqui o efeito de movimento é criado ao ‘espremermos’ dois contrários. Para visualizar, aperte com força os dois lados de um tubo de pasta de dente e veja o ‘movimento’ da pasta esguichando para fora do tubo. Quando mais forte você apertou, mais longe a pasta saltou. Veja como construí esse ‘movimento’ em LUZ: «*Hoje tomei a decisão mais importante na minha vida: não quero morrer nunca mais. Não sei como isto funciona com os outros. Talvez os outros morram. Talvez os corpos virem cinzas e, com eles, as suas lembranças, as suas histórias, as suas personalidades. O legado será apenas o que deixaram para os outros, a ‘persona’, isto é, o corpo e alma, se desejar definir assim o que o anima, sumirão para sempre, virarão poeira cósmica e será o fim. Comigo não será assim.»
Juntei todas as frases para que você melhor perceba o truque. Observe que coloquei um asterisco sublinhado (*) antes da palavra ‘hoje’. Isto, porque omiti de propósito a ‘descrição’ de um dos lados deste tubo de paste de dente. É como se eu omitisse a frase «antes eu queria morrer, só que…»
Obviamente, no Interlúdio é bem mais fácil de perceber o movimento, pois é físico. No LUZ, é psicológico. Na passagem que transcrevi do Saramago, também. Ou seja, o movimento não precisa ser tão percetível, pode ser mais sutil como uma porta que se fecha e o personagem se encosta na parede, respirando fundo, faltando-lhe o ar. Ou alguém que enxerga e, de repente, não enxerga mais.
Em resumo: não enrole! Quando você estiver escrevendo, você deve definir as regras de abertura o mais rápido possível. Se você quiser contar uma história mágica com bruxas, poções e parafernália, pode abrir sua história com um evento sobrenatural. Deixe claro desde o início que a magia é parte do jogo; Se você não o fizer, seus leitores poderão pensar que estão lendo um relato realista e sentir que um episódio mágico não se encaixa nesse contexto. Além disso, seus leitores devem ser capazes de identificar o humor, o estilo e o gênero do seu romance desde o início, a fim de saber se eles estão interessados nele ou não. Enfim, aprenda com os melhores. Se uma das regras principais para melhorar a sua escrita é ler muito, provavelmente adivinhou que, para escrever boas aberturas, deve familiarizar-se com muitas boas aberturas. Os primeiros capítulos da maioria dos best-sellers estão disponíveis para leitura nos sites das editoras ou sites de venda. E não é só isso! Tente prestar atenção naquelas de que você gosta. Anote-as e, a seguir, faça a si mesmo as seguintes perguntas: Como essas aberturas encantadoras foram construídas? Por que eles são eficazes? Qual é o segredo desses autores?
E você, quais sugestões de aberturas tem para nós? Uma vez que a abertura seja excepcional, escrever o romance fica fácil, é uma questão de determinação e disciplina. Afinal, a abertura já contém a semente da história, basta cuidar para que cresça e se desenvolva. Se você quer, você pode, se souber como!
James McSill
Consultor Internacional em Storytelling
Formador na Certificação Internacional em Storytelling